18 de Nobembre de 2010 - Nobenta anhos de bida muitas alegrias para mos dar: d'hoije nun anho Senhor Padre Zé
Augusto e Manuel eram dois irmãozinhos nascidos numa aldeia serrana. Rapazes como os demais da sua idade, viviam uma infância despreocupada, como os pardais na romaria, ou como as ervas do ribeiro. Dormiam de noite e sonhavam, brincavam e sonhavam de dia, excepto quando, por vezes, acordavam bruscamente para a dura realidade. Vida bem amarga. Tinham por dom o céu, uma mãe carinhosa, que os nimbava de beijos, mas também um pai que os enternecia dum amor violento, rude e autoritário com a estaca nodosa dum feijoal florido. Chefe e ditador da família, usava com os filhos a pedagogia herdada dos antigos, talvez dos velhos lusitanos. Assim precedia:! Nada de ternuras ou carícias. Nada de elogios. Poucas palavras, ordens secas, sem admitir desculpas “Nem mas” nem meio “mas”. Vais a correr e voltas a fugir. Ainda estás aí. Sempre a dormir! Brutos que nem portas. Não sei a quem saíram. Mais lorpas que aquele seu tio tonto que fugiu para Andaluzia. Não sentem cobiça para nada. E pela mínima falta zurzia neles como em centeio verde. O Augusto bem se lembra daquela vez: por causa dum passarinho encantador ia olhando e tropeçou. Tropeçou caiu e partiu a bilha junto da fonte, entre uns ramos secos. O pai tomou dum galho e deu-lhe tantas, tantas…ai Jesus. Parece que matava o garoto e não digo menos se a mãe, Ti’ Angelina, não acode a tempo a tirar-lho das mãos, daquelas mãozorras pesadas e calosas afeitas a britar pedra na mina dos Raposos. (Chamava-se Ti Domingos Mineiro)
– Deixa-me o rapaz – dizia ela – ainda os vais aleijar. Tens uns modos de bater. Deixa-o, já te disse. Oh raivas de homem este. E colocava-se no meio cobrindo o filho até passar a tempestade.
A mãe como que adivinhando dizia muitas vezes ao pequenos: – S’eu um dia vos vos venho a faltar, quem há-de cuidar de vós?
E aconteceu. Veio uma doença grave à Ti’ Angelina a que não resistiu. Os dois choraram ao princípio, mas em breve esqueceram aquele dia triste. Voltaram a dormir, sonhar e brincar. Brincavam um dia no ribeiro aos moinhos. Tinham, a seu modo, muitos sacos miúdos, feitos de pedra, junto dum cachão de escuma. Preparavam-se para os transportar no seu carro de lata que fazia um grande “chi-ó”, quando o pai os chamou com alta voz. Deixaram tudo e correram. Ti’ Domingos Mineiro que casara novamente quase em segredo, apresentou aos dois filhos outra mamã, desconhecida, que sorria para eles. Entretanto enchia-lhes os bolsos de confeitos.
Poderiam ter amor aquela nova mamã? Tivessem ou não, para eles pouco pouco importava contanto que, ao menos, lhes não batesse. Pancadaria de aquecer, já tinham que bastasse. Verdade seja dita que os garotos dos rapazes também faziam por merecer. Os títulos vulgares de piléus, lafraus calabreses ou escacha-pedras, se de todo os não mereciam, também por vezes não lhes assentavam.
Um dia chegaram com as calças rotas de andar aos ninhos enquanto as vacas andavam aos pães por onde lhes apetecia. Descuidados da vida iam-se para as penhas a deixar-se escorregar ou como dizem resgalgar. Saltavam os silvados e os ribeiros. Encabriolavam-se nos muros. Balançavam-se nas ramagens. Magoavam-se pintavam... a canastra.
– Ai se o pai o sabe.
– Tu não digas nada.
Em casa, sentiam-se presos, falavam pouco e baixo, monossilabicamente. Nos campos, consideravam-se livres e senhores. Procuravam a jolda. Expandiam-se em termos que lhes acudiam a boca, às vezes, atrevidos e de que nem sempre suspeitavam o sentido.
– Tu não digas nada! Olha que se o pai sabe!...
Mas Ti’ Domingos veio a saber muita coisa… e nem tudo. Ele que também de língua não fora circunciso, não tolera atrevimentos. De pequenino se troce o pepino e os maus rebentos.
Naquela tarde, ao chegar do trabalho, resfolegando, toma o soveio do carro e chama os dois para o quarto de dentro que obedeceram a tremer e chorar, sabendo de antemão aquilo que os esperava. Passou-lhes pela mente o pensamento da mãe, que Deus perdoe, tão carinhosa e compassiva. Ah! Se alguém os viesse libertar naquele aperto! A madrasta, essa não, não possuía entranhas de mãe; por isso nada havia a esperar dela! A nova mamã, não fazia caso, não se importava dos seus choros aflitos, não se confrangia dos soluços sufocados, ao compasso de golpes que começavam de estalar, tremendos, como tempestade que tomba.
– Deixai que eu vos ensino! Nem um pio, já disse! Nem um soluço. Malandros. Ides aprender. Tomai outra vez… que vos prendo daquela viga! Haveis de ver…daquela viga se não tomardes cuidadado!
E tomaram, olé, se eles eram rapazes… de pés no chão e cabeça na lua! Tinham de pagar caro o tributo (o tributo) da idade, idade inexperiente pela qual todos nós passamos…se procuram recordar-se.
– Ai se o pai o sabe, é que são elas.
– Desta vez mata-nos. Ao Manuel, mais novo já lhe parecia ver a figura do pai alto magro e seco, cabelo em desalinho, olhos em chama, cordoveias inchadas de cólera, soveio na mão, dentes semi-serrados: em volta, o ar torvo, depois a terrifica viga, a viga da cumeeira… fuliginosa.
– Anda cá, anda cá.
Augusto sentia o coração golpear no peito quase à boca da garganta: anda cá, anda cá. As pernas flácidas recusavam-se a entrar em casa. Por três vezes tentou… ouviu vociferar lá dentro e correu a esconder-se. Chamou o irmão que espreitasse e entrasse em casa pela janela das traseiras, agora mesmo que a madrasta foi à frente e o pai saiu com o picão. – Mas não faças barulho.
Foram-se esconder numa vinha, amarados à terra, que ninguém os visse. Cochichavam, à espaços, baixinho. Uma torda pedresa, veio poisar na sebe, ali perto, sem saber indiscreta. Augusto pegou num torrão para lhe atirar.
Depois esgarçou uma verjôntea tenra de videira, deu metade ao irmão, tiram-lhe a casca e começaram a saboreá-la com muitas caramunhas por causa da acidez. Olhavam-se mutuamente.
Seria engraçado se… mas naquelas circunstancias… pisavam o risco e a demora nele, cada minuto, votava contra. – Voltar, não voltar? E agora? Eles já sabem tudo! De certeza.
– Para casa não! Para onde?
Anda cá! Anda cá! Lembra-se quase ao mesmo tempo, de ter ouvido falar dum tio que tinham em Sevilha, irmão da falecida mãe, tão carinhosa! E por isso também, como ela, o tio havia de ter bom coração, de certeza! Mas tão longe.
– Nem por isso! Eu a pé em dois dias era capaz de lá chegar.
– E sabes o caminho?
– Não tem nada que saber, por ali pela serra – e apontava o norte. Atravessa-se a fronteira. Depois pergunta-se: é acerca!
– Vamos lá? – Vamos! – Mas se o pai descobre.
– Não se diz nada a ninguém.
– Em estando com o tio, ele defende-nos.
Anda cá! Anda cá – pulsava o coração na garganta e nos ouvidos.
Tombou a noite silenciosa, povoada de mistérios. Na casa do Ti’ Domingos arde um candeeiro de azeite sobre o limiar da porta. Á luz bruxuleante entrevê-se do postigo uma mesa tosca com quatro malgas de caldo que arrefece!
Espera que espera e eles não aparecem
– Onde se terão metidos esses tunantes? Que sova, que sova vão apanhar.
Nas casas dos vizinhos já não se fala de outra coisa à hora da ceia, quando se resumem os factos da jornada.
– Amontoaram! Diz-se que… é o tema obrigatório da conversa.
– Têm-nas feito bonitas.
– Mas também levam coça.
– Não é com muita pancada que se endireitam. Eu nunca toquei nos meus e eles bem se criaram. O pai impertinente faz o filho desobediente.
– Mas também não é com o galardão, deixando-lhes fazer todas as vontades!
Alguém que passa na rua pergunta.
– O Ti’ Domingos, então os vossos filhos ainda não apareceram?
– Vão apanhar uma tapona. Só me fazem arreliar. Roem-me os fígados.
– Não lhe deveis bater. Se não agarram medo e ainda é pior.
– Eu já só os queria ver em casa! Já vejo que bater não adianta. Tanto eu queria faze-los uns homens!
– Não se terão escondido no palheiro! Quem sabe … caído nalgum poço, na ribeira… o burburinho aumenta e faz sensação naquele após-ceia. Nas casas dos parentes ou vizinhos não se encontram. Juntou-se muita gente. Resolveram tocar os sinos a rebate, correr os campos com lampiões. Disparar tiros no ar, não tivessem adormecido, por aí, por esses barrancos, debaixo dos freixos ou castanheiros. No dia seguinte de manhã assomaram-se outra vez às minas e poços, furnas, matagais. Nada! Passou um dia, uma semana. Passaram meses. Ti’ Domingos, já de luto, continuava a procurar pelas minas, devesas, povoações vizinhas, tapadas, barrancos.
Fez promessas a todos os anos, aos santos à Senhora da Luz e do Livramento, a Santo António e S. Ciriaco. Mandou rezar missas!
Deixou crescer a barba, pôs gorjete preta e uma gorra de viseira caída na testa a cobrir as rugas.
Assim o vejo passar todos os dias a caminho da mina. Fala pouco e não sabe rir.
Muitos anos passaram. Quantos não sei. Certa manhã, a mulher do Ti’ Domingos, ao levantar-se muito cedo, viu dois vultos, a dormir no curral, cobertos com uma manta. Supôs tratar-se de pastores ou contrabandistas e não quis acordá-los. Passadas duas horas voltou e encontrou-os ainda dormindo.
– Pastores, levantai-vos, que são horas de soltar os rebanhos. Vamos, e dizendo isto descobriu-lhes o rosto. Pareceu-lhe… O coração deu-lhe um baque. Augusto, Manuel, sereis vós? Os meus filhos que voltaram, que julgava perdidos. Ai os meus filhos!...
Os dois mocetões, já de buço a pontear, sentiram um frenesim.
– Não quereis ver como os meus filhos voltaram. E que mocetões estão. Oh pobrezinhos todos esfarrapados, quanto sofreram por esses caminhos do mundo! ...
Ti’ Domingos alvoroçado com os gritos da mulher, aquela hora, levantou-se à pressa da lareira e abre a porta. Houve um momento de pausa. Depois estendeu os braços e exclamou com voz embargada: – Meus Filhos! E imprimiu um beijo na fronte de cada um, único, tão bem impresso que eles jamais, olvidarão o primeiro que guardaram de cor.
Padre Zé, Porto 20 de Novembro de 1961
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