O automóvel rasgava os campos pardos e pedregosos, acachapados pela canícula de Setembro.
‑ Esta viagem de Cicouro ao Nazo ‑ explicava o Manuel Transmontano, com uma ponta de exaltação na voz ‑, fazia‑a eu todos os anos a pé, eram cinco horas bem medidas a dar às canelas por esses caminhos de cabras. Desde que comecei a ter barba na cara, não me lembro de ter faltado a uma festa do Nazo. Aquilo sim, eram bons tempos. E aqui, nesta encruzilhada, foi onde me saiu ao caminho um lobo, quando eu, altas horas da noite, regressava a casa da festa da Nossa Senhora da Luz...
‑ Ó pai, já lhe ouvimos essa história vezes sem conta, e sempre com uma versão diferente ‑ repreendeu‑o a filha, piscando o olho ao Michel.
‑ Mas é a pura verdade. O que me valeu foi que nesse tempo eu era só pele e osso e o lobo, com certeza, não me achou grande fartura, deu meia volta ao rabo e foi à procura de presa mais gorda.
Rabugento, afligido pelo calor, faces rosadas em brasa, o Pierre saltava duns braços para os outros.
- Se te portares bem, prometo mostrar‑te os burros na feira
Logo o petiz se aninhou, sem tugir, no regaço da avó. Doido por burros, num alvoroço, durante aqueles primeiros oito dias de férias, arrastara sem descanso o avó aldeia fora, por cortinhas e currais, no encalço das pachorrentas alimárias.
‑ Eh Michel, no próximo Natal, dá um burro ao teu filho. É o melhor presente que lhe podes oferecer.
*
Foi entre risadas que chegaram ao Nazo. No alto do monte escalvado, a capelita de talha austera desafiava o tempo, os sinos num repique festivo.
‑ Está como há vinte anos ‑ murmurou o Manuel Transmontano.
E logo, os olhos carregados de evocações com o freio nos dentes, esquecido da família que fazia das tripas coração para o não perder de vista, misturou‑se ao povoléu. Perdeu‑se por entre as barracas de feirantes. mercou encarniçadamente um cinto de cabedal, abeirou‑se dos negociantes de gado, escutou a lábia dos ciganos que procuravam, tal como no seu tempo, vender burro velho por cavalo, juntou‑se às famílias que, no adro, à sombra dos choupos, abriam os farnéis imensos e desenrolhavam os garrafões de vinho. Já o sol dardejante ia alto e o ar vibrante, carregado de odores pesados, mal se podia respirar, o suor a abrir‑lhe regos pelas costas abaixo, arrastou a família esfalfada até às barracas de comes‑e‑bebes.
- Aqui, Michel,‑ voltou‑se para o genro ‑ vais‑te regalar com o melhor petisco do mundo. No Canadá não encontras nada disto, acredita em mim.
O Michel, a enxugar o suor do rosto com as costas da mão, ria meio aturdido pelas pinceladas fortes do quadro: as vitelas suspensas do travejamento do telhado dos barracões, a fumarada acre que subia dos braseiros onde a carne rechinava, as mesas de madeira corridas a abarrotar de comensais folgazões.
‑ Bien sûr, Manuel. Allons‑y.
Abancaram numa das mesas que acabara, por milagre, de vagar.
‑ Há tantas moscas por aqui ‑ queixou‑se a filha
‑ Já não é como dantes ‑ engelhou o nariz a mulher, olhando de esguelha os pratos de esmalte enbeiçados e limpando disfarçadamente o talher à fímbria da saia.
Mesmo o Michel, sempre tão delicado e esforçado por lhe ser agradável, também não o enganava, bem lhe sentia os olhos inquietos cravados nas mãos encardidas da velha que virava a carne no lume.
Só o neto é que parecia divertir‑se, aos pontapés a um canzarrão cheio de carraças que, debaixo da mesa, enxotava as moscas e o calor com o rabo.
‑ Claro que isto está como antigamente, vocês é que estão mais fidalgas. Mas se não quiserem, não comam que a mim não me faz grande diferença. Olhem, talvez encontrem para aí perdido algum McDonald's onde matar a fome.
E, quando a vitela veio para a mesa, enterrou vigorosamente a faca na carne suculenta. Levou um naco à boca e, lábios besuntados, a mastigar, regalado, deixou os pensamentos vogarem tranquilamente à tona da memória, até aos longínquos tempos em que, rapazote quase imberbe, depois de se banquetear com uma avantajada posta à mirandesa, à sombra daquele carvalho que dali avistava, estava em crer ser o mesmo, atrás dumas touças, perdera a inocência entre as coxas morenas duma cigana generosa.
- Em que estás a pensar? ‑ estranhou‑lhe a mulher o olhar vidrado.
A cara do Manuel Transmontano estilhaçou‑se num sorriso avelhacado.
- Logo à noite, conto‑te.