29.5.08

NAZO

O automóvel rasgava os campos pardos e pedregosos, acachapados pela canícula de Setembro.
‑ Esta viagem de Cicouro ao Nazo ‑ explicava o Manuel Transmontano, com uma ponta de exaltação na voz ‑, fazia‑a eu todos os anos a pé, eram cinco horas bem medidas a dar às canelas por esses caminhos de cabras. Desde que comecei a ter barba na cara, não me lembro de ter faltado a uma festa do Nazo. Aquilo sim, eram bons tempos. E aqui, nesta encruzilhada, foi onde me saiu ao caminho um lobo, quando eu, altas horas da noite, regressava a casa da festa da Nossa Senhora da Luz...
‑ Ó pai, já lhe ouvimos essa história vezes sem conta, e sempre com uma versão diferente ‑ repreendeu‑o a filha, piscando o olho ao Michel.
‑ Mas é a pura verdade. O que me valeu foi que nesse tempo eu era só pele e osso e o lobo, com certeza, não me achou grande fartura, deu meia volta ao rabo e foi à procura de presa mais gorda.
Rabugento, afligido pelo calor, faces rosadas em brasa, o Pierre saltava duns braços para os outros.
- Se te portares bem, prometo mostrar‑te os burros na feira
Logo o petiz se aninhou, sem tugir, no regaço da avó. Doido por burros, num alvoroço, durante aqueles primeiros oito dias de férias, arrastara sem descanso o avó aldeia fora, por cortinhas e currais, no encalço das pachorrentas alimárias.
‑ Eh Michel, no próximo Natal, dá um burro ao teu filho. É o melhor presente que lhe podes oferecer.
*
Foi entre risadas que chegaram ao Nazo. No alto do monte escalvado, a capelita de talha austera desafiava o tempo, os sinos num repique festivo.
‑ Está como há vinte anos ‑ murmurou o Manuel Transmontano.
E logo, os olhos carregados de evocações com o freio nos dentes, esquecido da família que fazia das tripas coração para o não perder de vista, misturou‑se ao povoléu. Perdeu‑se por entre as barracas de feirantes. mercou encarniçadamente um cinto de cabedal, abeirou‑se dos negociantes de gado, escutou a lábia dos ciganos que procuravam, tal como no seu tempo, vender burro velho por cavalo, juntou‑se às famílias que, no adro, à sombra dos choupos, abriam os farnéis imensos e desenrolhavam os garrafões de vinho. Já o sol dardejante ia alto e o ar vibrante, carregado de odores pesados, mal se podia respirar, o suor a abrir‑lhe regos pelas costas abaixo, arrastou a família esfalfada até às barracas de comes‑e‑bebes.
- Aqui, Michel,‑ voltou‑se para o genro ‑ vais‑te regalar com o melhor petisco do mundo. No Canadá não encontras nada disto, acredita em mim.
O Michel, a enxugar o suor do rosto com as costas da mão, ria meio aturdido pelas pinceladas fortes do quadro: as vitelas suspensas do travejamento do telhado dos barracões, a fumarada acre que subia dos braseiros onde a carne rechinava, as mesas de madeira corridas a abarrotar de comensais folgazões.
‑ Bien sûr, Manuel. Allons‑y.
Abancaram numa das mesas que acabara, por milagre, de vagar.
‑ Há tantas moscas por aqui ‑ queixou‑se a filha
‑ Já não é como dantes ‑ engelhou o nariz a mulher, olhando de esguelha os pratos de esmalte enbeiçados e limpando disfarçadamente o talher à fímbria da saia.
Mesmo o Michel, sempre tão delicado e esforçado por lhe ser agradável, também não o enganava, bem lhe sentia os olhos inquietos cravados nas mãos encardidas da velha que virava a carne no lume.
Só o neto é que parecia divertir‑se, aos pontapés a um canzarrão cheio de carraças que, debaixo da mesa, enxotava as moscas e o calor com o rabo.
‑ Claro que isto está como antigamente, vocês é que estão mais fidalgas. Mas se não quiserem, não comam que a mim não me faz grande diferença. Olhem, talvez encontrem para aí perdido algum McDonald's onde matar a fome.
E, quando a vitela veio para a mesa, enterrou vigorosamente a faca na carne suculenta. Levou um naco à boca e, lábios besuntados, a mastigar, regalado, deixou os pensamentos vogarem tranquilamente à tona da memória, até aos longínquos tempos em que, rapazote quase imberbe, depois de se banquetear com uma avantajada posta à mirandesa, à sombra daquele carvalho que dali avistava, estava em crer ser o mesmo, atrás dumas touças, perdera a inocência entre as coxas morenas duma cigana generosa.
- Em que estás a pensar? ‑ estranhou‑lhe a mulher o olhar vidrado.
A cara do Manuel Transmontano estilhaçou‑se num sorriso avelhacado.
- Logo à noite, conto‑te.

2 comentários:

Boieiro disse...

Bom dia Manuel

Al die 22 de Agosto teneremos que arranchar no cabanhal de la Bélha.
Meia bitela se calha nun chega para tanta fome de Praino.
Al que se negar paga la cuonta!

Abraços

Amadeu disse...

Buonas Tardes, Manuel,

Guapa cuonta cumo siempre. Scapou se te la mano pa l naZo,mas cuido que la puosta mirandesa sabe bien, mesmo bien, ye no naSo.

Un abraço, anquanto spero por mais ua cuonta de l Manuel Transmontano.
Amadeu