O Manuel Transmontano acordou com o berreiro desenfreado dos galos.
Na cozinha, foi encontrar a irmã a tratar da lavadura dos porcos. Já o lume, num estralejar festivo, devorava um braçado de urzes.
‑ Está frio.‑ Sentou‑se no escano e avançou as mãos para o lume. ‑ Já parece o Canadá.
‑ Diz quem sabe que este ano vai nevar muito ‑ respondeu a irmã. ‑ Deixa‑te ficar aí que eu vou levar a bianda aos cochinos. O café já está quase quente.
O Manuel apoiou as omoplatas na dureza do espaldar do escano. Embrulhado num manto de mil evocações com o freio nos dentes: aquele lume estralejante a saltar‑lhe às mãos como um cachorro; o eterno caldeiro cachoante de água fumegante; os potes de ferro resquentando a sopa; aquele fumo acre que se acumulava em nuvens densas e azuladas, matizadas pela luz do dia nascente, lá junto às vigas escurecidas do telhado donde pendia a armação do fumeiro, as varas ansiosas pela próxima matança; aquele mocho de castanho polido onde uma fogaça e uma caneca esmaltada esperavam o café.
‑Estavas a dormitar? ‑ Era outra vez a irmã. ‑ Nem quero acreditar que desta vez vens para ficar. ‑ O rosto curtido, enrolado no lenço negro, ensopou‑se de lágrimas velhas. ‑ E assim se nos foi a vida, Manuel, estamos acabados.
‑ Qual acabados, qual quê! Se tu visses aqueles canadianos! Quando se reformam é para viver, não é para se sentarem à espera da morte. Então as mulheres, se as
visses, velhotas de setenta anos e mais, parecem umas raparigas novas, bem trajadas, nada destes lutos de cá, cores claras, ricos penteados.
‑ Isso não é para estas terras. ‑ O café escorria, num murmúrio bom, para a caneca.‑ Não sei se a tua mulher, a Alzira, se vai dar por cá. Isto é um cemitério de velhos.
A mulher atirou um capão ao lume que, quando se viu com forças, atirou os braços rubros ao redor do caldeiro.
- Ela aceita de boa cara o regresso? Nas últimas férias, não me quis parecer.
‑ Que remédio tem ela.
Regresso! Palavra de mil alquimias. Nos primeiros tempos do Canadá fora abençoado remédio contra os males da saudade e do desenraizamento. Depois, à medida que novas raízes começaram a rasgar húmus imprevistos, transformara‑se, sem se darem conta disso, num processo lento, num espinho cravado nas carnes, num agente perturbador da paz de espírito.
Para não lhe perder o sentido, o Manuel, de tempos a tempos, evocava‑a: quando me reformar, regressamos a Portugal.
E semanas atrás, ao serão, num assomo de coragem, reunira as forças dispersas que lhe restavam, para falar:
"Dentro de seis meses, atinjo a reforma. Deveríamos ir a Portugal, preparar o regresso.
A lavar a loiça, de costas, o fio de voz da mulher era quase inaudível:
" Vai tu, sozinho. Agora, não posso deixar o nosso neto. Além disso, não precisas de mim para tratar do que há a tratar."
‑ A Alzira não se vai dar por cá. Cicouro já não é terra para ela. ‑ tornou a irmã. ‑ Vê lá se ela quis vir contigo!
‑ Cala‑te, dianho de mulher.‑ exasperou‑se. ‑ Não
veio porque não tinha com quem deixar o nosso netinho. Mas que raio de conversa esta!
‑ Mesmo tu estás diferente. Já não és homem para te enfiar neste buraco. ‑ teimou ela.
‑ Vai lá tratar dos porcos, anda! Estás a ficar velha, é o que é. De muita paciência precisa o teu marido, para te aturar.
Meio apoquentado pelas palavras da irmã, nessa manhã, quando se sentou à mesa da cozinha para escrever à mulher, o Manuel Transmontano falou‑lhe da casa que os esperava de braços abertos, da fidelidade do cunhado que tratara das terras com tanto zelo como se fossem dele, dos vivos e dos mortos, e, lá para a segunda página, num arroubo de coragem: "em todo o caso, ainda me sinto novo para trabalhar mais um ou dois anos, não é preciso apressar o regresso, não está nenhuma mulher para parir." Ficava assim aberta a porta para futuras negociações, no regresso a Montreal.
Depois, de coração liberto, saiu de casa e foi, rua abaixo, a falar a este e àquele, tão naturalmente como se nunca tivesse saido da terra.
2 comentários:
Boa noite Manuel
Na verdade ele nunca saiu, como tu que sempre permaneceste ente a Igreja e o Bairro Alto, o Palombar e a Pataca. Em boa hora mostras a "guelhada" de mestre para nos ensinar a guardar "la boiada".
Obrigado.
Um grande abraço
Bien haias, Manuel Carbalho, por mos traieres la tue scrita. Ye cumo aqueilha auga que, por por bien que bébamos, mos deixa siempre sede, de tan buona.
La mie sprança ye que un die qualquiera, you tamien gusto de sonhar, la tue scrita tamien seia an mirandés. La lhiteratura mirandesa percisa de muitos scritores, percipalmente daqueilhes que cumo tu dan de comer a l'alma.
Un abraço,
Amadeu
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